Sei que você já se sentiu pensativa ou incomodada ao ouvir o seu filho pedindo para brincar de boneca- ou se não se incomodou, com certeza alguém já te lançou olhares furiosos quando percebeu que você consentiu a brincadeira. Sei que também se pegou pensando se seria esse um indício de uma questão de gênero. A minha pergunta, porém, é outra: quando transformamos um desejo tão gostoso, que é o brincar, nesse bicho de sete cabeças?
Percebo que muitas vezes projetamos as nossas barreiras, que foram construídas ao longo dos anos, no terreno fértil de fantasia que é a infância. Tendemos a enxergar a vida da criança sob a ótica de quem já teve décadas para se formar, entender o mundo e todas as implicações da vida na sociedade que vivemos. Temos o costume de entender a criança sob os estigmas que carregamos em nós mesmos.
Devemos ter em mente de que a escolha de um brinquedo por uma criança significa puramente a vontade de brincar- e só. Os conceitos de que boneca é coisa de menina e carrinhos são só para meninos são estigmas culturais que a criança ainda não acessa com clareza. Para os pequenos, o brinquedo se torna interessante na medida que é chamativo, diferente.
Proponho que pensemos na brincadeira para além do brinquedo, e sim como um exercício dos seus aprendizados e dos seus sentimentos. O que, então, o brincar de boneca estimula? Compramos vários jogos para estimular a memória, incentivar a lógica nas crianças, mas qual é a brincadeira capaz de desenvolver socialmente a habilidade que talvez seja uma das mais importantes para um ser humano, e a que mais nos faça falta: o cuidado com o outro?
Se olharmos por uma perspectiva subjetiva da brincadeira com bonecas, veremos que o que geralmente está envolvido nessa prática é o cuidado, o carinho e a atenção. As crianças que brincam com bonecas as penteiam, as vestem, as colocam para dormir. brincadeira envolve todos esses sentimentos de manutenção e atenção com outro ser humano -mesmo que nessa dinâmica, ele seja de mentirinha. E que baita aprendizado é saber cuidar de alguém com tanto afeto como fazem as crianças com suas bonecas!
Talvez devêssemos olhar mais para as crianças como indivíduos em construção, que devem acessar e ter contato com todo o tipo de experiência para que se tornem seres humanos completos, com todas as suas virtudes e atributos. Quantas de nós não podemos dizer que o que mais desejamos que nossos filhos se tornem são homens que cuidem de si mesmos e de sua família, com amor e empatia?
Se seu filho está brincando de bonecas, não há com o que se preocupar: ele está tendo acesso a um aprendizado de extrema importância que o auxiliará a ser um adulto muito melhor para essa sociedade tão rígida, fria e estigmatizada em que vivemos.